quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Reflexões

"Não entrei na trilha dos saltimbancos por acaso, nem para ser um reles fazedor de graça. Eu queria consagrar a minha vida através de um imperioso apelo vocacional. Mas as pessoas, com suas receitas de sucesso, sem nenhum escrúpulo, sem nenhuma sensibilidade, vieram me falar de mil e um palhaços geniais. Tem um que comove multidões ao aprisionar um raio de sol pra levar pra casa...Tem um que faz balões de gás dançarem alegremente ao som de seu trompete...Tem um que ridicularizou um tirano, um assassino sanguinário que queria ser o senhor absoluto do mundo...Tem um comprido, de calça na canela, arcado para a frente devido ao pesado fardo da indignação contra a mecanização imposta ao homem moderno...Tem o magro sonso...E o gordo ingênuo e bravo...Tem os que dão piruetas, saltam, dão cambalhotas, levam bofetões...Tem os que tocam música clássica em garrafas vazias penduradas num varal...Tem outro... e outro... e outro...Tem aquele pobre palhaço louco que andava pelas igrejas jogando malabares diante das imagens da Santa Maria; esse, me disseram, morreu enforcado na cruz do Senhor Jesus Cristo, numa catedral gótica...Escutei humilde a história de cada um desses incríveis artistas que viajavam pelas vias da loucura. Saber desses palhaços...para mim, Bobo Plin, um palhacinho de merda que começava a engatinhar nos picadeiros mal iluminados das espeluncas...saber desses palhaços só serviu para me tolher. Quanto mais eu sabia deles, mais e mais Bobo Plin, o palhaço que eu queria ser, se enroscava nas minhas entranhas. A referência esmagava minha intuição e provocava auto-censura. A comparação, maldita inimiga da igualdade, fazia dos magníficos histriões elementos inibidores da minha criatividade. Agora, Bobo Plin não quer saber da façanha desses belos palhaços. Não quer vê-los. Nem quer saber de seus bigodes, sapatões, guizos, pompoms, bolas, balões e babados. A magia dos grandes artistas não pode ser ensinada; são segredos que se aprende com o coração. Essa magia se manifesta quando se resolve fazer a própria alma. Para Bobo Plin se irmanar com os grandes palhaços que luziram nos palcos e picadeiros tem que se esquecer deles para sempre. Não pode recolher nenhuma indicação deixada no caminho. Tem que andar sem bússola, na mais tenebrosa escuridão. Qualquer brilho, qualquer estrela, qualquer sol, qualquer referencial vira um ponto hipnótico embrutecedor. E eu quero fazer a minha alma."

Reflexões Teatrais - Plinio Marcos (... num pequeno circo)

4 comentários:

  1. Como um palhaço que sou, emocionado retribuo tal reflexão com versos de outros palhaços, palhaços sambistas:

    É melhor ser alegre que ser triste
    Alegria é a melhor coisa que existe
    É assim como a luz no coração

    Mas pra fazer um samba com beleza
    É preciso um bocado de tristeza
    É preciso um bocado de tristeza
    Senão, não se faz um samba não

    Senão é como amar uma mulher só linda
    E daí? Uma mulher tem que ter
    Qualquer coisa além de beleza
    Qualquer coisa de triste
    Qualquer coisa que chora
    Qualquer coisa que sente saudade
    Um molejo de amor machucado
    Uma beleza que vem da tristeza
    De se saber mulher
    Feita apenas para amar
    Para sofrer pelo seu amor
    E pra ser só perdão

    Fazer samba não é contar piada
    E quem faz samba assim não é de nada
    O bom samba é uma forma de oração

    Porque o samba é a tristeza que balança
    E a tristeza tem sempre uma esperança
    A tristeza tem sempre uma esperança
    De um dia não ser mais triste não

    Feito essa gente que anda por aí
    Brincando com a vida
    Cuidado, companheiro!
    A vida é pra valer
    E não se engane não, tem uma só
    Duas mesmo que é bom
    Ninguém vai me dizer que tem
    Sem provar muito bem provado
    Com certidão passada em cartório do céu
    E assinado embaixo: Deus
    E com firma reconhecida!
    A vida não é brincadeira, amigo
    A vida é arte do encontro
    Embora haja tanto desencontro pela vida
    Há sempre uma mulher à sua espera
    Com os olhos cheios de carinho
    E as mãos cheias de perdão
    Ponha um pouco de amor na sua vida
    Como no seu samba

    Ponha um pouco de amor numa cadência
    E vai ver que ninguém no mundo vence
    A beleza que tem um samba, não

    Porque o samba nasceu lá na Bahia
    E se hoje ele é branco na poesia
    Se hoje ele é branco na poesia
    Ele é negro demais no coração

    Eu, por exemplo, o capitão do mato
    Vinicius de Moraes
    Poeta e diplomata
    O branco mais preto do Brasil
    Na linha direta de Xangô, saravá!
    A bênção, Senhora
    A maior ialorixá da Bahia
    Terra de Caymmi e João Gilberto
    A bênção, Pixinguinha
    Tu que choraste na flauta
    Todas as minhas mágoas de amor
    A bênção, Sinhô, a benção, Cartola
    A bênção, Ismael Silva
    Sua bênção, Heitor dos Prazeres
    A bênção, Nelson Cavaquinho
    A bênção, Geraldo Pereira
    A bênção, meu bom Cyro Monteiro
    Você, sobrinho de Nonô
    A bênção, Noel, sua bênção, Ary
    A bênção, todos os grandes
    Sambistas do Brasil
    Branco, preto, mulato
    Lindo como a pele macia de Oxum
    A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim
    Parceiro e amigo querido
    Que já viajaste tantas canções comigo
    E ainda há tantas por viajar
    A bênção, Carlinhos Lyra
    Parceiro cem por cento
    Você que une a ação ao sentimento
    E ao pensamento
    A bênção, a bênção, Baden Powell
    Amigo novo, parceiro novo
    Que fizeste este samba comigo
    A bênção, amigo
    A bênção, maestro Moacir Santos
    Não és um só, és tantos como
    O meu Brasil de todos os santos
    Inclusive meu São Sebastião
    Saravá! A bênção, que eu vou partir
    Eu vou ter que dizer adeus

    Ponha um pouco de amor numa cadência
    E vai ver que ninguém no mundo vence
    A beleza que tem um samba, não

    Porque o samba nasceu lá na Bahia
    E se hoje ele é branco na poesia
    Se hoje ele é branco na poesia
    Ele é negro demais no coração

    Samba da Bênção
    Vinicius de Moraes
    Composição: Vinicius de Moraes / Baden Powell
    >
    Atenciosamente, palhaço Pam Pam

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  2. Pam Pam, foi uma lembrança genial!!!!
    Quanto ao texto de Plínio, eu que tive o prazer de conviver com esse ser humano brilhante, aprendi a buscar na minha essência aquilo de grandioso que eu queria fazer.
    Pode sair pequenino, mas faz boa figura, hehehe.
    Beijão aos palhaços de ontem, de hoje e do todo.

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